sexta-feira, 7 de janeiro de 2005

Cinco ângulos

A batida de uma porta, vinda bem do andar de cima, fez os músculos da testa de Valtair se contraírem daquele jeito que os moradores do edifício Ambu conheciam bem. O síndico era daqueles que são radicalmente contra a lei do silêncio só começar a valer a partir das dez da noite. Para ele, das oito em diante o silêncio deveria ser obrigatório, e qualquer desobediência à lei deveria ser punida severamente (chineladas constavam de sua lista de merecidos castigos). Pensou em se levantar e ir até lá. Esses jovens nunca aprendem. Tem que repetir, repetir, repetir,...

A batida de uma porta foi o último som que Telma ouviu, antes que a ligação caísse. Pensou que seu telefonema talvez pudesse ter sido a causa do que tinha acabado de ouvir. Lembrou-se da vez em que um simples recado seu naquela secretária eletrônica havia causado um tremendo mal-entendido. Pensou naqueles comentários que sempre ouvia, mas que ignorava, pois sabia que não era com ela. Ou seriam? De qualquer forma uma súbita preocupação começava a tomar conta de seu pensamento. Será que ela realmente acredita que... Não, é bobagem minha. Definitivamente. Uma mulher tão centrada como ela...

A batida de uma porta acordou o pequeno Renato, que dormia no quarto ao lado. Suas pálpebras estavam inchadas e ele ainda se lembrava do pai tendo uma de suas primeiras conversas sérias com ele. As palavras daquele homem que ele amava tanto machucaram muito, mesmo tendo soado tão suaves, como de costume. Aquele dia também tinha sido a primeira vez em que Renato sentira medo de verdade. Papai? Mamãe?

A batida da porta foi a gota d’água. Aquela situação não podia mais continuar assim. Renato pensou em todas as tentativas frustradas que havia feito para tentar mudar aquela decisão, tomada meses antes. Pensou nas possibilidades que ainda restavam para tentar solucionar o problema que inevitavelmente o afetava. Estava disposto a tentar tudo. Preciso que ela me escute.

A batida da porta foi a gota d’água. Aquela situação não podia mais continuar assim. Bruna tateou o chão ao seu redor e levantou-se. O nariz doía como só os narizes sabem doer quando levam uma pancada. Colocou os óculos de volta com todo o cuidado. Finalmente começava a admitir para si mesma que não era mais possível adiar aquela visita ao oftalmologista. Assim que o Renato tocar no assunto de novo eu vou aceitar que ele me leve lá. Aproveito e levo o Renatinho pra fazer o exame também.

[antes de aparecerem os créditos, aparecem fotos e o narrador diz:]

Senhor Valtair até se levantou, como tinha pensado. Isto porém somente ocorreu às seis e meia da manhã, motivado por uma bexiga que quase gritava de dor.

Dona Telma preparou um sanduíche de atum e continuou lendo sua Marie Claire.

Renatinho nunca mais tentou juntar numa única brincadeira o cachorro, um tomate e alguns fios desencapados.

Renato finalmente conseguiu que Bruna admitisse sua quase cegueira, em função de uma miopia galopante. Hoje ele é muito mais feliz e nunca mais teve de socorrer a esposa no shopping.

Bruna ostenta um charmoso fundo de garrafa e se considera uma nova mulher.

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